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O Céu Também Tem Nuvens

Cómoda

Janeiro 26, 2021

Tenho uma cómoda à esquerda
Onde tentei separar
Tudo o que vestia.
A madeira oca foi-se calando
Coberta com tecidos
Que acompanham o espírito
A cada volta que dão.
Uma pele escolhida,
Agasalhos dos dias que passam,
Que nos vão acrescentando camadas.
Muitos afundam,
Perdem-se nas gavetas
E, entretanto, já não sei onde estou.
Tentei separar, reordenar as vestes
Mas as texturas escondem-se por detrás da madeira áspera
E, no fim,
Emaranham-se todas e ficam ali. Sem mim.

Um dia, vou porta fora
Só com a pele que sempre vesti
E não me vou sentir nua,
Vou sentir que renasci.

Lábios vermelhos

Janeiro 16, 2021

Os lábios vermelhos
Ornavam a boca
Que queriam calar.
A cor do perigo
De beijos soltos no postigo
De palavras ternas,
Fáceis de amar.

Os traços tão distintos
Que cada batom desenha
São ecos de vários instintos
De múltiplos espíritos famintos
Por mostrarem as suas façanhas.

Atrás só a pele,
Uma vontade mais nua
Mas é sempre a mesma que sai à rua.

Podem ouvir-se os saltos altos
Sobre a cidade mouca
Mas muito mais ecoa
Quando alguém também carrega
O coração na boca.

Maré

Janeiro 09, 2021

São os ares do mar
         Que nos deixam loucos
Que inebriam com o perfume
Pérfido
    Das algas
E embatem contra as rochas
      Enquanto nos erodem a nós.
Sou menos eu e mais água
               Um corpo espraiado ao largo
Cabelos ondulantes
      Arrastados nas correntes
                           A desfazerem os nós
  Que os ventos do norte embaraçaram
       E virada a oeste
       Entrego-me à maré.
       Vou com ela
       Até não ter pé.

Intermitente

Janeiro 07, 2021

A luz vem amarela,
O ambiente é propenso à fome,
À cólera,
Aos grandes males da humanidade.
Estes também se manifestam
Debaixo de uma lâmpada
Solitária


Na sua verdade.
As pontas dos dedos iluminadas
Trabalham, dedilham como podem
Fazem-no em laivos rabugentos
Da alma dormente
Que chega em arrepios, intermitente
Uma luz difusa
Discreta e apagada
Sob uma face iluminada
De brilho ausente

Água turva

Janeiro 05, 2021

Fechei os olhos.
O silêncio da água encheu-me os ouvidos
O ar inquieto afastou-se da boca
E abrandou
Adaptou-se, um corpo ao outro,
O meu ao do mar.

Fechei os olhos.
A água turva em volta
As algas nos pés e os cabelos nos ombros,
Todos com o mesmo afagar
Cinza e verde
Um gole em seco
Um sopro último
Antes de me tornar
Parte daquele silêncio
Mundo mudo
Onde só o movimento
Me dá um momento
E me deixa respirar
Num leve ondular.

Artifício

Dezembro 31, 2020

São estrelas cadentes
  Que alguém acabava de elevar
    Rasgos de fogos ardentes
      Que sabem que não vão durar
        As luzes que ardem e desvanecem
          Têm um rastilho como o meu
            Fulminantes, mas mal aquecem
             Já se perderam no breu
                Soube a pouco,
                   Mas nunca aterram
                      E sabem que toda a gente as viu

Trégua

Dezembro 30, 2020

Lento, lento
Não contento
Só aguento neste passo
Travo a fundo
Pauso o cansaço
Fica lá fora enquanto me abraço
Vejo o fumo, quando ele é névoa
Mas neste compasso sabe a trégua
Um esgar fechado, pálpebra negra
Um ar pesado, quando já chega
É chuva, é pedra
É uva que cega
Um embalo meloso
De quem se nega
No dia chuvoso
Em que se entrega.

Café

Junho 16, 2020

Queria ver poesia

Nas borras do café.

 

Queria sentir-me quente

No assento da cadeira

Chávena pousada, gole sim, gole não

E nestas calmas

Saber que os meus lábios não sentem falta

De palavras mornas

De outros, suaves

Onde ressoasse

A simplicidade que é

O tiritar de uma chávena

E um sabor permanente

Como o do café.

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