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O Céu Também Tem Nuvens

Deitados

Fevereiro 14, 2021

Olhos rasgados,
Olham-me deitados
Com um boa noite e um bom dia
Que enchem dois peitos.

A quietude do momento suspenso
Em que não se perde, mas se ganha tempo
Os entretantos que não são vírgulas,
mas o mais intenso
Neste contínuo que revejo
Na suavidade de cada beijo
Nos pés cruzados
Nos lençóis entrelaçados
Entre os quais se diz tudo
De lábios mornos e parados.

Lubélia

Fevereiro 06, 2021

Mãos frias, coração quente,
Ou mãos quentes, amor ausente.

Há uns dias o tempo arrefeceu.
Uma rajada levou as palavras
E quem as disse para o céu.

Aqui entre nós choveu,
Já sentimos falta de alguém.
Que do seu canto, ou de onde está,
Quis sempre o nosso bem.

A todos os encontros,
Um sincero "como estás?"
E a cada resposta torta
Respondia com um humor sagaz.

Uma mulher discreta e bonita,
Com um gosto de fazer inveja.
Permanece agora altiva
Aonde quer que ela esteja.

Pessoas normais

Janeiro 31, 2021

A Sally Rooney teve a minha atenção pela banalidade dos títulos: “Conversas com amigos” e “Pessoas normais”, os livros mais conhecidos da autora, atravessaram-se muitas vezes no meu feed em 2020. E agradava-me a ideia de ser uma história “só” sobre o que é comum, e que muitas vezes acaba por ser pano secundário para as desventuras de alguém especial, quando, na verdade, é aquilo que dá corpo a todos os dias.

Esta ideia foi desfeita quando comecei a ler o “Pessoas normais”. Confesso, não gostei nada do início. Senti que estava a ler uma novela para adolescentes, com pessoas a preto e branco, populares fúteis versus inteligentes inadaptados à sociedade e, no meio desta dinâmica, duas pessoas “especiais”, que respeitavam as normas com relutância, e fingiam encaixar sem de facto pertencer àqueles grupos.

Fui à contracapa, reli as críticas positivas, e então não desisti – dei uma segunda oportunidade ao livro. Felizmente, não demorou muito até ganhar outra densidade e captar o meu interesse. Os personagens principais, o Connel e a Marianne, deixaram de ser apenas adolescentes retratados com pouco fundo, para se mostrarem indivíduos muito mais complexos, não só na sua relação como no íntimo de cada um.

E o que penso que fez este livro valer mesmo a pena foi precisamente esse equilíbrio. Por um lado, perceber-se como aquelas duas pessoas, ambas normais nos seus desejos e ambições, tinham uma bagagem e forma de lidar com ela muito próprias. Por outro, entender de que forma é que isso acaba por interferir na forma delas se relacionarem – por mais que gostassem um do outro, tinham claramente formas distintas de gostar, de sentir e de se expressarem, o que muito naturalmente – e normalmente – complica esta relação de uma forma tão leve quanto profunda.

Um livro em que nas passagens mais simples são percetíveis as contradições e motivos de perturbação que tornam as vidas “normais” muito mais complexas do que aquilo que se chega muitas vezes a pensar.  

 

A quem leu, sentiu o mesmo, ou sou eu que estou a complicar? Aos restantes, ficaram curiosos? É uma história que vos interessa?

Cómoda

Janeiro 26, 2021

Tenho uma cómoda à esquerda
Onde tentei separar
Tudo o que vestia.
A madeira oca foi-se calando
Coberta com tecidos
Que acompanham o espírito
A cada volta que dão.
Uma pele escolhida,
Agasalhos dos dias que passam,
Que nos vão acrescentando camadas.
Muitos afundam,
Perdem-se nas gavetas
E, entretanto, já não sei onde estou.
Tentei separar, reordenar as vestes
Mas as texturas escondem-se por detrás da madeira áspera
E, no fim,
Emaranham-se todas e ficam ali. Sem mim.

Um dia, vou porta fora
Só com a pele que sempre vesti
E não me vou sentir nua,
Vou sentir que renasci.

1Q84

Janeiro 22, 2021

Foi esta trilogia que me introduziu a Murakami e, até agora, é sem dúvida a minha obra favorita do autor. 

É uma história contemporânea de amor, de mistério, mas sobretudo de muita fantasia. O livro não nos transporta para outro mundo – faz-nos oscilar entre mais do que um, ao mesmo tempo que deixa a sensação que não arredamos pé do nosso, já que é uma história dos dias de hoje. O Tengo, a Aomame e a Fuka-Eri fazem-nos dar saltos entre realidades, misturar magia com as coisas mais mundanas, numa história impressionante e de uma imaginação, lá está, mesmo do outro mundo.

Este livro apresentou-me também a muitas constantes do Murakami, as quais só percebi que eram recorrentes nos seus livros ao longo das leituras seguintes, claro. Estou a falar de gatos, literatura, música, culinária, exercício físico, pormenores da expressão humana e por fim amores, à sua maneira, intemporais. 

O livro faz uma reflexão sobre a escrita, não fossem dois dos personagens principais escritores. Como leitora que também gosta de pegar no lápis e no papel, fiquei logo interessada nesta parte. A música, em particular a clássica, é constantemente referida – como se o autor nos quisesse dar uma banda sonora para a leitura. Mas, como se isso não bastasse, dá-nos ainda os sabores, descrevendo várias refeições com detalhe, e sensações físicas muito precisas, que honestamente farão todo o sentido para aqueles que costumem dar alguma atenção ao corpo.  

Todas estas descrições contribuem para entrarmos naquela realidade, mas temos ainda o extra de o livro estar repleto de asteriscos que vão clarificando aquelas referências à cultura japonesa que nos poderiam deixar confusos, ou simplesmente escapar. Lembro-me ainda de ficar admirada com a forma como o Murakami capta e descreve pequenos detalhes, micro expressões, gestos que normalmente passariam despercebidos ao olho e à narrativa mas nos quais nos conseguimos facilmente rever. Para mim, nisto, ele é genial.

Vou terminar a realçar um último traço que me é querido nos livros deste autor, nos do 1Q84 em particular: estão repletos de desencontros, e não são uns desencontros quaisquer (têm mesmo de ler, senão não tem piada). Mas a solidez das ligações amorosas, que se mantêm vivas mesmo sofridas as reviravoltas mais alucinantes, é algo que muito me agrada e que não sai como forçado. Há aqui uma naturalidade e genuinidade dos sentimentos, assim como uma elasticidade estoica e sem culpa que são, sem dúvida, um porto seguro nesta leitura.

Estendi-me um pouco, mas foi um dos meus primeiros amores, e dos que me dá mais certezas que a literatura contemporânea tem muito para oferecer e por onde ir buscar magia. 

Vocês gostam de leituras mais alternativas? 

Lábios vermelhos

Janeiro 16, 2021

Os lábios vermelhos
Ornavam a boca
Que queriam calar.
A cor do perigo
De beijos soltos no postigo
De palavras ternas,
Fáceis de amar.

Os traços tão distintos
Que cada batom desenha
São ecos de vários instintos
De múltiplos espíritos famintos
Por mostrarem as suas façanhas.

Atrás só a pele,
Uma vontade mais nua
Mas é sempre a mesma que sai à rua.

Podem ouvir-se os saltos altos
Sobre a cidade mouca
Mas muito mais ecoa
Quando alguém também carrega
O coração na boca.

Maré

Janeiro 09, 2021

São os ares do mar
         Que nos deixam loucos
Que inebriam com o perfume
Pérfido
    Das algas
E embatem contra as rochas
      Enquanto nos erodem a nós.
Sou menos eu e mais água
               Um corpo espraiado ao largo
Cabelos ondulantes
      Arrastados nas correntes
                           A desfazerem os nós
  Que os ventos do norte embaraçaram
       E virada a oeste
       Entrego-me à maré.
       Vou com ela
       Até não ter pé.

Intermitente

Janeiro 07, 2021

A luz vem amarela,
O ambiente é propenso à fome,
À cólera,
Aos grandes males da humanidade.
Estes também se manifestam
Debaixo de uma lâmpada
Solitária


Na sua verdade.
As pontas dos dedos iluminadas
Trabalham, dedilham como podem
Fazem-no em laivos rabugentos
Da alma dormente
Que chega em arrepios, intermitente
Uma luz difusa
Discreta e apagada
Sob uma face iluminada
De brilho ausente

Água turva

Janeiro 05, 2021

Fechei os olhos.
O silêncio da água encheu-me os ouvidos
O ar inquieto afastou-se da boca
E abrandou
Adaptou-se, um corpo ao outro,
O meu ao do mar.

Fechei os olhos.
A água turva em volta
As algas nos pés e os cabelos nos ombros,
Todos com o mesmo afagar
Cinza e verde
Um gole em seco
Um sopro último
Antes de me tornar
Parte daquele silêncio
Mundo mudo
Onde só o movimento
Me dá um momento
E me deixa respirar
Num leve ondular.

Monstros

Janeiro 02, 2021

Um grito estilhaçado

Com a força de mil espadas

Um laivo desgraçado

De quem se abre em alas

A retina aguçada

Pelas águas quebradas

As veias arregaçadas

As garras prontas a espetá-las

 

Duas forças no chão contorcidas

Sabem bem que não é em vão

Todas as pulsões sentidas

Rasgam ventres e vidas despidas

De pudores e inação

 

Monstros em carne rugem por dentro

Um uivar rouco que dá alento

Rebenta a testa, a dor na nuca

Estala a fala, não cala a luta

É aqui entre os meus vértices que perfuro

Tudo o que ficou neste lugar escuro

Não fui lá buscar aquilo que enterrei

Saiu ainda agora, não pediu, não tentei

Abri-lhe a porta, faces rosadas

Do rubor que as cobre quando estão escancaradas

Prestes a viver, correr nas estradas

Invadir o meu ser

Que é lá fora, onde nunca páras.

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